quarta-feira, 10 de junho de 2009

Promessa é dívida


Era uma tarde de outono quando conheci Nouvelle. Apesar do nome francês, ela tinha uma ascendência nordestina que eu descobri logo na primeira olhada. Os cabelos crespos discretamente alisados, as pernas curvas e bem torneadas, a pele moreno-jambo. Ela não era, nem de longe, bonita. Mas era um tipo atraente.

- Boa tarde, senhor. 
- Bom dia – corrigi-a. Eu ainda não havia almoçado e, para mim, antes do almoço ainda é dia – Carne de pato ao molho madeira e cebola à milanesa para petiscar, por favor – adiantei, poupando-a daquele falar arrastado e penoso que eu vim a amar e a odiar mais tarde, necessariamente nessa ordem.

Nouvelle me trouxe o prato depois de um bom tempo de espera. Comida fria e sem sal. Odeio comida fria e sem sal. Mulher minha que cozinhar comida fria e sem sal apanha na boca. Comi, mastigando aquilo tudo com muito desgosto e, ao fim da nada prazerosa refeição, chamei a garçonetezinha de cabaré barato que ela era.

- Garçonete!
Prestativa como uma vagabunda sentindo necessidade de um pau, ela veio. Aquele andar cadenciado, aquela bunda mole e aquelas unhas roídas de certa forma me atraíam.
- Pois não.
- A comida estava uma merda, mas eu sei que a culpa não é sua. Sei que você é uma mera cumpridora de ordens. Se eu te mandar chupar meu pau agora, você chupa. E escuta uma coisa: eu vou tirar você desse lugar, putinha – eu prometi, dizendo cada sílaba da última palavra com um entusiasmo explosivo.
Ela se mostrou surpresa. Surpresa, mas resignada. Surpresa talvez porque ninguém nunca havia lhe prometido mais do que uma colherada de feijão naqueles cafundós do Nordeste de onde ela viera. Resignada porque, provavelmente, ela era uma putinha de fato.

Fui para casa pensando naquela promessa. Dirigi, e os peitos de Nouvelle não saíam da minha cabeça. Abri o portão, e a bunda mole de Nouvelle não saía da minha cabeça. Beijei minha mulher e meus filhos, e as coxas de Nouvelle não saíam da minha cabeça. Foi uma noite longa. Samara queria sexo, e eu não estava nem aí para ela. Eu queria era Nouvelle, mas acabei comendo Samara. Foi tão automático quanto rápido e sem-graça, apesar de Samara ter aquela brancura cinematográfica, os peitos pequenos e durinhos, uma fileira de pintinhas nas costas e uma xana bem apertadinha.

Vale ressaltar que, até esse ponto da história, eu ainda não sabia que Nouvelle era Nouvelle. Para mim, ela era apenas a garçonetezinha do restaurante chulo da esquina do escritório.

Na manhã seguinte, a caminho do trabalho, passei em frente ao restaurante e não resisti: entrei. Eram oito e quarenta e cinco de uma manhã nublada. Não vi Nouvelle. Apenas as cozinheiras trabalhavam montando marmitex. Segui para o escritório para puxar o saco do doutor Novaes, enquanto tudo o que eu queria era que Nouvelle chupasse meu saco.

As horas nunca passaram tão devagar. Contava milimetricamente a trajetória do ponteiro do meu relógio de pulso. Deu meio-dia e eu saí para almoçar. Todo mundo estranhou, afinal, eu só conseguia almoçar depois da uma e meia. Ofereceram-me companhia. “Coitado, almoçar sozinho é tão triste!”. Não aceitei e fui.

Meus pés, que antes faziam aquele caminho de forma mecânica, passaram a hesitar para dobrar a esquina. Por fim, lá estava eu no restaurante, à procura de Nouvelle, da minha Nouvelle.
Solícita, veio me atender de novo. Talvez nem fosse por causa da minha promessa. Provavelmente porque, naquela espelunca, só havia ela de garçonete.

- Boa tarde, senhor.
- Bom dia – corrigi-a. Já passavam cinco minutos das doze, mas como eu ainda não havia almoçado ainda era dia – Strogonoff de frango com batata palha – adiantei novamente.
Dessa vez, o prato chegou mais rápido. Igualmente ruim. Mastiguei aquela pasta e chamei Nouvelle. Dessa vez, fui mais polido.
- Qual o seu nome?
- Nouvelle, senhor – disse ela levando a língua aos lábios para pronunciar a última sílaba.
- Nossa, que merda. Nouvelle de cabelo alisado, essa é boa. Você sabe, pelo menos, o que significa Nouvelle? – perguntei, com uma ponta de desdém.
- Sei, sim, senhor. É novo em francês – respondeu a garçonetezinha de quinta, com um orgulho de quem descobriu a América.
Resolvi não prolongar o assunto. Aquela figura submissa e misteriosa estava me excitando. De pau duro, passei a mão na bunda dela. Ela não reclamou.
- Eu vou tirar você daqui, putinha. Que tal um passeio no parque amanhã? – sem deixá-la responder, continuei – Passo aqui às quinze pras nove para te pegar.
Como ela não recusou, deduzi que aquele silêncio e aquele olhar tímido lançado ao chão fossem um sonoro “sim”.

Voltei ao escritório, mas não consegui mais trabalhar. Era Nouvelle pra lá, Nouvelle pra cá. Minha mente estava repetitiva, exausta e cheia de perversidade. Então, resolvi ir para casa, agüentar toda aquela merda de Samara e mais dois filhos. Tudo bem, era só por aquela tarde/noite.

No dia seguinte, mal o sol nasceu e eu já estava de pé, terno e gravata, como se eu fosse para o escritório. O caminho foi longo, estava nervoso como quando fui, aos meus quinze anos, num puteiro qualquer perder a minha virgindade. O pauzinho duro tão fino como um biscoito de polvilho – rio até hoje ao me lembrar desse episódio. O fato é que agora eu já era crescido e parecia um ridículo iniciante. Mas acho que todo o nervosismo se resumia a, talvez, fazer a maior cagada da minha vida. E o mais ridículo é que eu nem conhecia aquela vadia: eu a vira apenas duas vezes na vida! O rádio ligado nas notícias do dia, como de costume, deixava uma tensão no ar. Mudei de estação, ouvi um jazz e cheguei à rua Vicente Abraão, número 52.

Ela estava na porta, com uma roupa simplezinha, mas bonita. Saia preta, blusa branca, sapatilha prateada. Entrou no carro sem que eu a convidasse, e eu achei isso bom. Sinal de que as coisas não seriam tão difíceis assim. Ela começou:
- Sol bonito, né?
Não respondi. Com ela eu não estava a fim de papo. Ela servia – e muito bem – para outras coisas. Eu nunca a havia provado, mas sabia tão certo como um pênis encaixa numa vagina. Chegamos ao parque. Era relativamente perto do meu trabalho, e eu tinha medo de que alguém do escritório me visse por lá, ainda mais acompanhado de outra - todos sabiam que eu era casado, e eu fazia a maior questão de esconder toda e qualquer mazela que pudesse existir na minha família. Não fiz a mínima cerimônia para Nouvelle descer do carro. Já fizera demais em ter dado carona para ela. Ela não era mulher que merecia essas coisas de abrir a porta, puxar a cadeira e etecétera. Ela servia - e muito bem - para outras coisas. Fomos andando em direção ao lago, enquanto tudo que eu pensava era em afogar o ganso (ha-ha-ha!). Chegamos e paramos em frente ao lago. Aquele silêncio estava me constrangendo. Para quebrar a tensão, eu enchi minha mão nas carnes da bunda mole dela. Ela não reclamou e, para mim, não reclamar é gostar. Mas a áurea ficou ainda mais estranha depois disso. Esperava que ela, diferentemente da primeira vez, porque agora não estava em ambiente de trabalho, dissesse um manhoso "pára!" e começasse a defender sua honra e pureza. Ou até que ela gritasse um sonoro "vá se foder, seu filho da puta!". Tudo seria melhor do que aquele silêncio constrangedor.Nos sentamos à beira do lago – os patinhos até sugeriam certo romantismo, mas eu odeio romance – e, então, eu resolvi puxar assunto.
- Como você foi parar naquela merda daquele restaurantezinho de quinta?
Esperando uma resposta como "de quinta, mas bem que você frequenta", brochei ao ouvir aquela moça contando uma história trágica. Coisa de seca no Nordeste, sete irmãos, família retirante... Não estava o mínimo interessada naquela jornada trágica, mas deixei ela falar durante uns cinco minutos, só para se sentir importante. Enquanto isso, eu não conseguia tirar os olhos daqueles peitos. Nouvelle era uma besta, e bestas ficam muito bem de quatro. Eu queria continuar tudo aquilo: meu pau duro, a xana dela melada. Eu queria continuar.

E continuei. No dia seguinte, no trabalho, inventei que tivera uma disenteria que até me deixara internado. E esse foi o pretexto para eu sair mais cedo do trabalho – afinal, disenteria sempre dá delay no dia seguinte – e procurar Nouvelle. Precisava fodê-la. Fui até o restaurante e achei estranho não encontrá-la por lá. Das poucas coisas que prestei atenção na nossa conversa, lembro-me dela dizendo que não folgava em dias de semana... Mas não perguntei por ela. Não me rebaixaria a isso.

Na quarta-feira, estava desconcentrado. O trabalho não rendia, o café não me despertava; estava agoniado. Desci para o almoço – sem fome – ao meio-dia e quarenta e três – antes do horário de costume. Mal pude acreditar quando vi Nouvelle sentada na recepção. Atrevida demais, aquela vagabunda.

- Como você descobriu que trabalho aqui? – perguntei, puxando-a pelo braço.
- Vi no seu crachá enquanto você almoçava no restaurante – Nouvelle estava chorando.
- O que aconteceu? – indaguei, seco.
- Faltei ontem no serviço e fui despedida. – ela quis chorar no meu ombro, e eu logo me afastei.
- Por que você não inventou uma diarreia?
- Porque eu sou honesta.

Pra mim, na verdade, aquilo era papo para ganhar consolo. Enfiei-a no carro e a levei para um motelzinho pulguento, mas discretinho. Ela não se opôs. Apenas me seguiu, sem reclamar. Joguei-a na cama, arranquei-lhe a roupa, dei-lhe um bofetão na cara. Nem de longe aquela havia sido a melhor foda da minha vida, mas a inércia dela me excitava. Ela não gemia, não se mexia, não suspirava. Apenas cedia o buraco aonde eu socava meu pinto com uma violência de Tarantino.

Nossas fodas passaram a ser diárias, com exceção dos finais de semana. O corpo dela nem era tão bonito – muito pêlo, muita estria, muita flacidez – e ela nem era boa. Mas fodê-la me aliviava a tensão e me fazia homem. Comer Samara não era assim: Samara não era inerte; ela gritava, me mordia, me arranhava, pedia mais. Ela brilhava mais na cama do que eu.

Eu estava feliz. Apesar de ter que ouvir as constantes queixas de uma Nouvelle desempregada e as súplicas para que eu a colocasse para trabalhar no escritório, nem que fosse como faxineira (eu sempre respondia que nem para passar lustramóveis no rodapé ela tinha capacidade, mas ela insistia nessa ideia insana), comê-la me fazia ter pique para comer Samara como um coelho, para trabalhar como um workahoolic, para dirigir como um piloto de F1, para brincar com meus filhos como uma criança, para dormir como um anjo.

Segunda-feira chegara, e eu não tinha mais pânico nem depressão aos domingos. À uma e vinte e sete, desci para almoçar. Mais uma vez, encontrei a miserável lá embaixo. Dessa vez, ela não chorava. Parecia estar feliz. Fui logo a repreendendo por ter me procurado no trabalho novamente e perguntei qual era a novidade, tendo a plena certeza de que felicidade de pobre não podia ser mais do que a aquisição de uma TV de vinte e nove polegadas em vinte e quatro parcelas nas Casas Bahia.
- Estou grávida. – ela disse, com um leve sorriso no rosto.
Não respondi. Não podia responder ali. Não havia o que responder, afinal, aquilo não era uma pergunta, e sim uma afirmação – equivocada, diga-se de passagem. Meus espermatozóides não seriam tão burros a ponto de fecundar um óvulo de um animal como Nouvelle. Na dúvida, fiz que não entendi:
- Ahn?
- Estou grávida. – ela repetiu.
- Pára de brincadeira. E me deixa almoçar em paz.
- Não é brincadeira. Comprei o teste de farmácia e deu positivo.

Teste de farmácia é coisa de pobre, mas raramente falha. Eu estava nervoso. Enfiei Nouvelle dentro do meu carro, levei-a ao laboratório médico mais próximo. Pela segunda vez na vida – a primeira foi na doença do meu pai – clamei por Deus na vida. Aquilo não era verdade.



- Sua puta, vagabunda, desgraçada, maldita, lazarenta. O que nós vamos fazer agora? Bem que eu deveria saber que você só prestava pra dar cria. Ordinária!

E foram tantos os palavrões e maldizeres que eu cuspia saliva, eu espumava, eu desgrenhava meus cabelos. Percebi que ela ficou assustada com a minha reação. Minha vontade era de bater nela até perder o juízo, até não poder mais, até perder a força, até ensopar minha camisa de suor, até desfacelar aquele rosto de retirante nordestina com fome. Mas eu não podia. Contei até três, larguei-a lá e voltei para o trabalho. Até hoje não sei e não faço a mínima questão de saber como ela fizera para voltar para aquele barraco na favela do Saco, se Nouvelle mal tinha dinheiro para comer. Me afundei numas planilhas e depois fui para casa, sem o menor pique para aguentar o fogo de Samara. Tomei um banho de uma hora e meia e pensei na vida. Já sabia bem o que fazer, mas aquilo era tarefa pro dia seguinte.

Na terça-feira, acordei cedo. Pus a camisa mais bonita do closet, a mais branca que encontrei no armário. Dia de gala.
- Bom dia, seu Clóvis.
- Bom dia, meu filho! Tá bonito! Roupa de gala?
- Sim, hoje tenho um dia muito especial. Uma caixa de digoxina, por favor. A minha acabou ontem, já fiquei sem tomar por mais tempo do que eu deveria...
- Claro!
Solícito como sempre, seu Clóvis trouxe uma caixinha azul com uma tarja vermelha, provavelmente com a inscrição “venda sob prescrição médica”, mas farmacêutico nenhum liga mais pra esse tipo de detalhe nos dias de hoje. Seu Clóvis não era exceção e sabia da minha cardiopatia e da minha necessidade de comprar digoxina mensalmente, o que facilitava ainda mais meu acesso ao remédio.

Sempre reclamei feito um ranzinza dos quinze reais dispensados todo mês com essa porra desse remédio – não sou pobre, sou muxiba, disso todo mundo sabe. Mas daquela vez foi diferente. Eu estava disposto a pagar o dobro, o triplo, o duodécuplo. Saí da farmácia guardando aquela caixinha de papelão no bolso, como se ela fosse uma pedra de diamante que eu tivesse tirado do charco com a boca e lapidado a dente.

Fui para o escritório, trabalhei feito uma formiga no verão. Não parei para almoçar, não me levantei para esticar as pernas, não fui ao banheiro uma vez sequer, nem pra dar uma mijada, nem pra bater uma punheta. Eu estava feliz. Agitado, mas feliz. Ansioso, mas feliz. Fodido, mas feliz.

Às cinco e vinte da tarde, entrei no meu A3, já tão impregnado com o cheiro azedo de Nouvelle, e tomei rumo à favela do Saco. Eu sabia qual era o barraco dela porque num acesso de bondade, um dia, depois de fodê-la, levei-a até aquele muquifo. Não era difícil distinguir um barraco do outro. Pobre gosta de cores, e o da Nouvelle era verde água com rosa claro, “as cores da Mangueira”, como ela dizia.

Bati à porta, e ela não tardou a me atender, com um sorriso no rosto – pela primeira vez na vida, aquilo pra mim era um rosto, e não um focinho. Eu também estava amigável e beijei-lhe os lábios disformes com uma ponta de carinho. Ela ficou surpresa, e eu disse:
- Surpresa maior ainda está por vir. Vou ali no carro e já volto.

Audi A3 em boca de favela não pode ser outra coisa senão carro de traficante, devia pensar o pessoal daquele cafundó pra me olhar com tanto respeito. Peguei uma garrafa de Cabernet Sauvignon, um botão de rosa vermelha e um pano preto. Conferi se o remédio estava no meu bolso. Tudo nos conformes.

- Fecha os olhos – eu gritei do lado de fora.
Sempre subserviente e ingênua, ela fechou. Vendei-a com o pano preto e ela gostou. Coloquei-a sentada no sofá-cama e fui para a pia, que ela usava tanto para cozinhar quanto para lavar roupa, como se podia perceber ao ver um prato de vidro e uma calcinha suja de corrimento dentro da mesma cuba. Com asco, peguei dois daqueles copos de requeijão que pobre usa para beber água e despejei o vinho. Em um deles, diluí bem cinco comprimidos esmagados de digoxina. Pus o caule da rosa dentro do meu terno, só deixando a flor para fora. Queria fazer um ar galanteador e acho que fiquei bem bonito.

Fui até Nouvelle, desvendei-a, entreguei-lhe a flor e o copo de vinho. Deslumbrada com aquilo tudo, ela começou a chorar e a beber o vinho em goles de encher as bochechas.
Pronto. Serviço feito. Mal terminei meu copo, Nouvelle já estrebuchava no chão. Ela ficou tão feia, mas tão feia, que eu até tive vontade de sair correndo. A boca na diagonal, espumando. Os olhos vidrados, quase pulando fora da órbita. Os cabelos desgrenhados, a escova vencida.
Já ia virando as costas quando pensei com meus botões: por que não comê-la pela última vez? Nouvelle se manteve mais inerte do que de comum. Mas eu gozei, e então ficou tudo bem. Saí de lá pensando como sou um homem de palavra. “Vou tirar você desse lugar, putinha”. Quem se atreve a dizer que eu não tirei? É... pra mim, promessa é dívida.