segunda-feira, 13 de abril de 2009

Quando um homem chora


Ela mexia com os meus brios. Os olhos negros sob as sobrancelhas cerradas me fuzilavam num simples mirar. Os lábios carnudos sob o buço escurecido me devoravam a cada sorriso, que deixava à mostra seus pares de dentes tão claros e fortes. Eu sonhava – e como sonhava! – com aquele corpo largo preenchendo mais da metade da minha cama.

Ela era Alzira. Eu não sabia o nome dela, mas para mim era Alzira, a moça que passava para lá e para cá carregando tijolos e argamassa a fim de colaborar na construção da nova paróquia da cidade. Seus braços troncudos eram capazes de erguer e carregar uma parede de concreto. Eu nunca a vira fazendo tal coisa, mas tinha certeza de que era capaz.

Ela era pura e boa. Eu sabia que, além de ser voluntária na construção da igreja, trabalhava por lá também à noite. Fazia canja de galinha para distribuir aos pobres. Banhava o padre assim que os sinos badalassem as oito. Padre Júlio – coitado! – fora incapacitado por um acidente: tropeçara na batina no dia de todos os santos, enquanto fazia oferendas ao ar livre, e rolara ribanceira abaixo, mais de trezentos e cinqüenta pés de altura. Desde então, ficara inválido das pernas, mas mesmo assim continuava a rezar a missa com o mesmo fervor de anos atrás.

Fervor que só não era maior do que o borbulhar do meu sangue quando Alzira passava carregando três baldes d'água, um em cada mão e o terceiro equilibrado na cabeça ligeiramente plana e coberta por uma vastidão de longos fios negros e cacheados. Toda aquela água vinda do açude deveria abastecer o tanque de reserva da igreja. A água que batizaria os recém-nascidos de Ponta do Sol já era benta pelo simples tocar das mãos calejadas de Alzira. Água aquela que também banharia o corpo do Padre Júlio e – por que não?! – o corpo moreno e femininamente viril da minha Alzira. Água esta que eu beberia até me afogar, na sutil esperança de sentir o gosto azedo do suor de Alzira. Água aquela que regaria as flores em oferenda à Nossa Senhora.

A Minha Senhora era Alzira. Era minha, apesar de a minha pele nunca ter tocado a dela, de os cílios dela nunca terem roçado a minha barba, de a minha boca nunca ter encontrado a dela, de as unhas dela nunca terem se cravado na minha carne. Carne fraca, eu precisava tê-la. Querer nunca é o bastante.

Moço, me vê um arranjo de flores? Qual deles? O mais bonito que tiver. Ele então voltou com um maço de rosas vermelhas e amarelas. Vermelho da paixão, amarelo do respeito. Junto com as flores veio um cartãozinho em branco. Mas tá em branco, moço... É pra você escrever a mensagem que quiser, o moço disse. Então me empresta uma caneta, eu respondi. Pensei, pensei, pensei. Os meus neurônios de menos e o meu vocabulário de quarta série do primário não me permitiam ser como os poetas. Então eu pus em letras de forma bem grandes um EU TE AMO, e em letrinhas formiguinhas um mesmo sem te conhecer. Assinei o cartão com a caligrafia mais bonita que eu sabia fazer. Acertamos as contas, eu e o moço da loja das flores. Ele continuou por lá, eu segui pela rua de terra me encorajando. Mas só de lembrar daquele par de pernas torneadas e ligeiramente peludas, eu estremecia de cima a baixo. Ela não era pra mim.

Cheguei em casa. Casa simples a minha, mas que dava pra bem acomodar dois corpos: o meu mais o de Alzira. Descalcei os sapatos, massageei os artelhos gastos de tanto pé no chão. Me peguei pensando nela, me repreendi. Pus a roupa de domingo, apesar de ainda ser quarta-feira. Reforcei a lavanda e fui em direção à casa paroquial, de ramalhete na mão.

Aquele caminho que os meus pés sabiam trilhar de cor nunca fora tão longo... Vinte e sete, vinte e oito, vinte e nove. Minhas mãos estavam trêmulas, o cartãozinho caíra no chão barrento. Eu abaixei-me para pegá-lo. Cinqüenta e um, cinqüenta e dois, cinqüenta e três. Estava sujo, mas ainda dava pra ler a declaração. Até as letras pequenininhas. Oitenta e quatro, oitenta e cinco, oitenta e seis. As lamparinas da cidade estavam todas acesas. Bonito ver minha terra enfeitada para mim e para ela. Cento e treze, cento e quatorze, cento e quinze. Eu já suava como uma bica. De nada adiantara a lavanda reforçada. Cento e quarenta e oito, cento e quarenta e nove, cento e cinqüenta. Meus Deus, minhas unhas estavam sujas! É que trabalhar com terra é assim mesmo, ela há de entender. Cento e setenta e nove, cento e oitenta, cento e oitenta e um. Xiii, minha camisa azul e verde de flanela estava furada no punho e tinha o colarinho manchado. Eu botara água fervendo, mas de nada adiantara. Ela havia de entender que homem que vive sozinho não anda tão brilhoso quanto homem de mulher. Duzentos e quarenta e seis, duzentos e quarenta e sete, duzentos e quarenta e oito. Duzentos e quarenta e nove! Duzentos e quarenta e nove passos eram a distância da minha casa até a casa paroquial. Distância entre mim e minha Alzira.

A casa paroquial era velha, mas bem conservada. Parei ali na porta grande e verde, precisava tomar coragem. E se ela recusasse meus agrados? E se ela não soubesse ler e eu tivesse de dizer o que estava escrito no bilhete em alto e bom tom? E, pior, se ela lesse o bilhete e desdenhasse de mim? Foi só então que eu percebi que as luzes da frente da casa paroquial jaziam todas apagadas. Podia ser que ela estivesse distribuindo sopa aos pobres. Esperei mais uns cinqüenta passos. Aí não me agüentei. Pus-me a rondar a casa toda, à procura de nem que fosse uma luz de vela. Encontrei uma claridade mansa no que deveria ser o banheiro da casa. Ela deve estar a banhar o padre, pensei em voz alta. Foi então que encostei o ouvido sob a janela e ouvi gemidos. Voz grave. Devia ser o padre reclamando das dores do acidente. Eis que então percebi, pela janelinha, a sombra na parede dos corpos juntos à luz das velas. Mal sabia eu distinguir o que era Padre Júlio, o que era Alzira.

Fiquei aturdido. O primeiro pensamento que me turvou a cabeça foi que o padre a assediava. Pobre Alzira, nas minhas mãos não seria tratada assim. Maldito padre!, de que adianta pregar respeito e condenar pecado na missa?! Sujo, nojento, cabra desgraçado! Eu ia falar pra cidade inteira, eu ia pregar cartazes de repúdio na porta da igreja, eu ia mostrar pra todo mundo que o padre não era paralítico coisa nenhuma, que ele era um maníaco, isso sim! Foi aí que meus pensamentos de revolta foram interrompidos por palavras de incentivo não minhas, mas vindas de dentro da casa: vai, continua, mais, mais! E então caí em mim: Alzira gostava! Vadia, vagabunda, puta de estrada! Cadê toda a pureza e a bondade que ela tinha? Por que fazer isso com o meu coração? Animal burro que eu era!

Saí com o coração quebrado, mas pulsando mais forte do que nunca. Que morram Alzira e o padre, ele penetrado nela! Alzira, minha Alzira, cadela de eremita! Como pude nutrir os mais nobres sentimentos por uma mulher fácil e descartável? Nunca me sentira tão otário e enganado em toda a minha vida. O caminho de volta me pareceu tão curto, e eu não consegui maldizer os dois nem a metade do que mereciam.

Cheguei em casa, descalcei as botas sujas de barro – de tão fundo que eu pisava, imaginando meus pés afundando o lindo rosto de Alzira e as partes baixas do padre –, e só então foi que percebi que ainda carregava o arranjo de flores com o cartãozinho. Num primeiro impulso, atirei-o ao chão. Umas poucas rosas perderam as pétalas, e eu olhava aquilo com os olhos mareados. Então recolhi as rosas e percebi que elas de nada tinham culpa. A essa hora, eu já chorava. E era tanto, que dava para encher o vaso de flores só com as minhas lágrimas. Meus olhos embaçados não me permitiam ver com certeza. Tateei toda a cômoda velha, achei uma garrafa de vidro. Abri, cheirei. Parecia-me pinga. Entornei tudo aquilo como se fosse água e, tonto, caí no chão. A garrafa se estilhaçou. Pus a mão sobre os cacos de vidro até sentir o sangue quente correr pelas minhas palmas e pingar no chão. Apalpei um pedacinho de papel, era o cartãozinho. Pensei em rasgá-lo nos mais minúsculos pedacinhos. Mas não foi preciso. Ele se despedaçou de tanto o sangue que o sujava e de tantas as lágrimas que caíam dos meus olhos.

Trôpego, resolvi me deitar, e prometi pra mim mesmo, embriagado, que só acordaria na semana seguinte. O mundo podia desabar que eu não estenderia um só dedo. Fechei os olhos, mas tudo o que me vinha à cabeça era a sombra dos corpos entrelaçados. Maldisse tanto aqueles dois, que minha cabeça só se esvaziou lá pelas quatro da manhã, a hora em que eu finalmente consegui dormir.

Mal tinha pregado os olhos, acordei com socos desesperados em minha porta. Acorda, senhor moço! Acode, senhor moço!, uma voz feminina gritava. Contrariado, pus os pés pra fora da cama e senti a cabeça pesada e latejante. Abri a porta, esfregando os olhos. Que foi? Uma tragédia, senhor moço! Vem comigo! Eu, de olhos inchados, bafo de onça e de roupa de domingo que eu me esquecera de tirar, fui correndo atrás da moça desesperada. Cada passo me soava como uma martelada na cabeça. Paramos de solavanco, e foi então que esfreguei bem meus olhos e vi o que eu não queria ver: a igrejinha em construção havia desabado. Escombros, escombros, escombros. E eu à procura de minha Alzira. Pus-me a urrar em desespero, feito um urso polar no cio. Pulei sobre os escombros e comecei a revirá-los com as mãos. Eu precisava encontrar Alzira. Todos me olhavam com estranhamento, e foi então que eu encontrei um par de pernas morenas, peludas e torneadas. Puxei com toda a minha força aquele corpo debaixo dos escombros. Eis que surge Alzira, a minha Alzira, sem um dos braços e com um rosto lindamente inexpressivo. Pus meus ouvidos sobre o seu peito largo e de seios escassos. Peguei o pulso do braço que ainda restava. Tateei seu tórax, na esperança de senti-lo inflar. Não havia sinais vitais. Alzira, a minha Alzira agora receberia as minhas rosas de paixão e respeito sobre seu túmulo.

Eu não podia acreditar que minha boca era tão santa assim. Comecei a chorar copiosamente sobre o cadáver e a esmurrar minha própria boca até cair o primeiro dente. Não me importava com as expressões de espanto das pessoas ao redor. Atirei meu corpo sobre o corpo inerte de Alzira, precisava senti-la, precisava reanimá-la. Comecei a beijar-lhe a boca e a rasgar-lhe o vestido laranja que lhe cobria os pudores. E lá estava ela, sem se queixar ou resistir. Alzira era puta mesmo. Não me contive e rasguei-lhe a calcinha. Precisava tê-la, nem que fosse por um segundo. No mesmo momento em que a costura mal feita da calcinha se rompeu, caí para trás de surpresa. Não, não podia ser. Alzira, meu Deus, era um homem!



Moral da história: nem tudo é o que parece ser. E mulher precisa fazer depilação.