terça-feira, 6 de agosto de 2013

Ele não ligou - Sobre bebedeiras e telefones celulares

A bebida entra, a verdade sai. Aposto a primeira rodada de cerveja que você já foi vítima do verdadeiro crime hediondo que esse ditado preconiza. Crime esse cuja pena é aturar durante tempo indeterminado os fantasmas da própria consciência – como se suportar a cabeça latejando e aquela saliva com gosto de quase morte no dia seguinte já não fossem punições cruéis o bastante. Mas aquela noite, você decidiu que nada seria o bastante. Antes de sair de casa colocou o vestido mais curto, como se ele não fosse curto o bastante. Calçou o salto mais alto, como se ele não fosse alto o bastante. Passou o batom mais vermelho, como se ele não fosse vermelho o bastante. Borrifou o perfume mais forte, como se ele não fosse forte o bastante. Você foi tudo o que não costumava ser de segunda a sexta em horário comercial, como se ser aquela menina insossa do escritório não fosse o bastante. E não é mesmo – convenhamos.

E saiu de casa disposta a arrasar – corações, quarteirões, pensamentos, Dry Martinis e o que mais estivesse pela frente. E você realmente foi um belo dum furacão, daqueles que deixam qualquer Katrina na sola do chinelo – ou melhor, do salto quinze. Daqueles que a gente só observa de longe. Daqueles que a gente até senta pra ver passar – cantando ou não cantando coisas de amor. Daqueles que a gente espera ir embora pra contabilizar os estragos. E olha, dessa vez, os estragos foram muitos. Graves. Irreparáveis. Cinco corações partidos, cinco pensamentos roubados, nove taças de Martini sorvidas – duas delas quebradas – e uma verdadeira inundação de suor banhando o chão onde todo mundo dançava mecanicamente ao último remix que fizeram daquela música do Bruno Mars.

Ninguém sabia, porque você escondeu muito bem, mas você travava uma batalha secretíssima contra você mesma. Contra aqueles pedaços de você que ainda choravam por ele, que saiu para comprar cigarro há dois meses e desde então não voltou. E você venceria de lavada, viu? Venceria com honras, com pétalas, com chuva de champanhe, com tapete vermelho – se não fosse o seu celular. Ah, o celular. Aquela desgraça digital. Nostalgia de um tempo que não experimentamos, em que as únicas maneiras de marcar um encontro se resumiam ou a ser pontual ou a esperar ansiosamente na frente de um orelhão. Você sacou seu celular do bolso e mandou um “eu te amo” pra lá de ébrio pra ele. Sim, o moço do cigarro. Que provavelmente já estaria perdido em outros braços – não tão carinhosos quanto os seus. Amordaçado em outros lençóis – não tão macios quanto os da sua cama.Acalantado por outras vozes – nem tão bonitas como a sua.

Pelo menos naquela noite, ele não havia respondido. Não adiantou nada evocar o santo milagreiro daquele panfleto que lhe entregaram no farol na semana passada. Não adiantou nada beber outro Martini pra descontrair – afinal, não dizem que as coisas acontecem quando a gente menos pensa nelas? Não adiantou nada a promessa de só olhar o celular de novo depois que já tivesse chegado em casa. Ele não respondeu. Não ligou. Ignorou. Pode ser que nem tenha visto – você tenta se acalmar. Espera mais uma, uma e meia, duas horas. E nada. Então você pega no sono, vencida pelo cansaço de um coração esmigalhado. E como Amy Winehouse em seus dias de pouca glória, você acorda. Os cabelos desgrenhados – mas não pelas mãos faceiras de algum menino. Os olhos borrados – mas não de tanto se esfregar com algum cara. A cabeça virada – mas não de paixão. Então, certa de que Amy sabia das coisas quando cantou que “love is a losing game” (ou “o amor é um jogo de azar”), você admite a derrota.

Pelo menos você falou a verdade – aquele “eu te amo” precisaria sair de dentro de você pra não virar câncer aos 45 anos. A verdade impulsionada pela bebida que entrou. Você poderia ter dito tantas verdades, mas preferiu dizer essa. Poderia ter dito ao menino da fila do bar como os olhos castanhos dele eram bonitos. Poderia ter dito à sua amiga como ela ficou bem com o novo corte de cabelo. Poderia ter dito a um estranho qualquer que Deus, à imagem e semelhança do homem, não existe. Mas preferiu dizer essa verdade. Três palavras e sete letras que já quebraram muitos corações quando não correspondidas. Mas é isso aí. Agora você vai, lava o seu rosto de misericórdia e compra mais uma dúzia de fichas para jogar na roleta do amor. Se alguma delas vai vingar? Não sei. Mas aí é que está a graça. Afinal, como já dizia Oscar Wilde, “the mistery of love is greater than the mistery of death” (ou “o mistério do amor é mais intrigante do que o mistério da morte”). E que aprendamos a conviver com isso.

Originalmente publicado em Casal Sem Vergonha

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

You cannot kill what you did not create

Nunca fui rico, mas sempre gostei de luxo. E sempre odiei aquele bordãozinho ordinário "sou pobre, mas sou limpinho". Limpinho é a puta que o pariu. Na verdade, nem isso, porque boceta de pobre cheira a bacalhau, e boceta de rica cheira a sabonete íntimo de pH neutro.

Rico que é rico de verdade pode ser porco, que sempre tem a empregada pobre pra limpar a casa, lavar a roupa, cozinhar o almoço. Não que a empregada seja empregada porque é limpinha, mas sim porque lhe faltaram oportunidades.

E comigo não foi diferente. Oportunidades faltaram a mim também. Não tive oportunidade de estudar em Havard, não tive oportunidade de comer caviar, não tive oportunidade de fazer minha despedida de solteiro, não tive oportunidade limpar a bunda com seda chinesa, não tive a oportunidade de dormir em travesseiro de pena de ganso, não tive a oportunidade de usar saia de chita, não tive a oportunidade de menstruar. Mas tive a oportunidade de gozar dentro da Rita.

Rita era uma mulatinha assanhada. Morava num barraco cheio de móveis das Casas Bahia, que só serviam para encher de bibelôs. As paredes eram repletas de pôsteres das cantoras do rádio. Rita sempre dizia que adorava enfeites e coisas pregadas na parede. Casada, tinha dois pares de filhos que carregava embaixo dos braços fortes para onde quer que fosse. À época em que nos conhecemos, amamentava todos eles: um pretinho de nove meses, uma crioulinha de dois anos, uma outra de três e meio e um marmanjo de sete anos - desconfio até hoje que o profaninho já conhecia a delícia de chupar um bom peito. Aliás, Deus foi injusto com Rita e comigo. Ela deveria ter nascido cadela, para ter três pares de teta: um para saciar todos os filhos e dois pra mim, um para chupar e o outro para apalpar.

Vou me abster de contar os detalhes sórdidos. Eles podem até ser úteis para desperdiçar espermatozóides viris de algum garoto punheteiro de 14 anos, mas não são tão relevantes para a história que lhes conto.

Para mim, meu relacionamento com Rita não era secreto, mas para ela era. Apesar de ela ser pobre, eu não fazia a mínima questão de esconder nada. Não tinha medo daquele brutamontes preto com quem ela era casada. Sempre andei com um três oitão na cintura, e massa muscular nunca me intimidou. Tenta usar sua força contra a minha bala, feladaputa. Rita se cagava sempre que eu falava desse jeito. Ela dizia que eu não sabia do que ele era capaz. Hoje, tenho certeza de que eu sou capaz de muito mais coisa do que ele.

Duvido que, algum dia nessa vida, ele cuspiu na cara do prefeito. Eu cuspi e até saí nos jornais. Duvido que ele tivesse mijado no mendigo da Praça Onze. Eu mijei e saí correndo. Duvido que ele tivesse dado o cu uma vez que fosse. Eu dei para experimentar, mas não gostei.

Não cheguei a trepar muitas vezes com Rita. Mas se não venci aquele jogo de rugby do colégio em 1979, um dos meus espermatozóides me vingou, vencendo a famosa corrida da foda. Rita emprenhou. Quando fiquei sabendo que seria pai, reagi como aquelas socialites embotocadas. Não sorri, porque não estava feliz. Não chorei, porque não estava triste. A gente só sabe se filho é coisa boa ou ruim depois que nasce, cresce e cria ou não caráter e vergonha na cara.

Quando criança, Rubinho era um pretinho bonito, daqueles que fazem propaganda do Exército da Salvação, segurando um ursinho cheio de esparadrapo debaixo do braço. Mas Rubinho cresceu e não criou nem caráter nem vergonha na cara. Era um crioulinho meio metro, cabeça raspada, pés descalços e nariz sujo. Só me trouxe desalento. Se antes eu deitava na cama e dormia, agora eu procurava o sono até cansar. O desgraçado era mau, só se enfiava em encrenca. E eu, como pai, por mais que ausente, me preocupava, afinal, ele era sangue do meu sangue e estava sujeito a sujar meu nome.

Certa vez, Rubinho escaldou o gato da dona Marta em água fervente, pelo simples prazer de matar. Enfiou um estilete na barriga de outro pretinho na primeira série do ensino fundamental, pelo simples prazer de ver o sangue fluir. Afundou a cabeça de outro colega de escola na privada até o coitado perder a consciência, pelo simples prazer de ver o sofrimento alheio.

A essas tantas eu já estava casado com uma mulher rica. Feia, mas rica, de boceta cheirosa. Albertina mais parecia o cão chupando manga virado do avesso. Mas tinha dinheiro e não me fazia trabalhar. Vida de marajá, tudo o que eu sempre quis. Apesar de eu raramente ver Rubinho, e isso não me ser nenhum desprazer, aquele delinquentezinho só não era interno da Febem ou corpo enterrado na vala do Vale das Almas por minha causa. Eu tinha contatos, fazia umas correrias e pedia a proteção dele em troca.

As poucas vezes que nos cruzávamos e olhávamos um na cara do outro, saía faísca. Eu odiava aquele protótipo de bandido e não acreditava que eu fora capaz de fazer uma coisa tão mal feita daquele jeito. Ele tinha todos os requisitos necessários para ser considerado perigoso: inteligente, frio, detalhista, corajoso, ousado, exato, persistente, livre de arrependimentos. Expressões como "truta" e "sangue bom" saíam da boca dele com a mesma naturalidade que um pau fica duro ao ver uma bunda gostosa.

Um dia eu estava bêbado e fui até a casa de Rita. Estava precisando relaxar, dar uma. Não tinha coragem de encarar Albertina nem bêbado. A bicha era tão feia que mais valia eu bater uma com um cano de PVC. Cheguei ao barraco, todos estavam dormindo. Acendi a luz e arranquei Rita da cama. Ela estava deitada ao lado do brutamontes preto. Ele era escuro e grande que nem aquelas merdas dignas de entopir privada. E enquanto eu arrancava a roupa de Rita, ela resistia e ele acordava. O brutamontes começou a me agredir. A princípio, eu não queria largar Rita, mas mesmo bêbado, o meu orgulho falou mais alto. Começamos a rolar no chão, e eu não estava a fim de usar minha pistola (a bélica). Durante uns vinte minutos, nos socamos no melhor estilo ultraviolento. Eu já não enxergava quase nada, tamanha a quantidade de sangue que cobria meus olhos, quando reconheci a silhueta de Rubinho na sala.

O crioulinho pulou no meu pescoço. Enquanto o brutamontes me socava, Rubinho apertava minha jugular. Eu estava dominado, mas ainda tinha chances de revide. No desespero, nossos instintos animais ficam aflorados. Foi então que cravei meus dentes com toda a força que pude no saco do brutamontes. Ele caiu de dor, quase desmaiado. Me livrei do pretinho afundando minhas unhas nas mãos dele. Num plano sequencial, saquei meu três oitão. Rubinho e o brutamontes já haviam se levantado quando descarreguei a arma contra eles. Tive o capricho de dividir igualmente as balas no corpo cada um. E os dois ficaram inanimados, grudados na parede por sangue e bala.

Rita olhava, abismada. Não conseguia nem chorar tamanho o choque. Tentei me justificar.
- O Rubinho era meu filho. Se eu fiz, eu tinha o direito de desfazer.
Ela não reagiu. Na tentativa de consolá-la, eu falei:
- Não é você que gosta de enfeite pregado na parede?
Ela não respondeu. Virei as costas e fui embora.

domingo, 16 de agosto de 2009

Manifesto pessimista

Cansei de toda essa desinformação.
É nas bancas de jornais, é nos bancos de praça, é nas filas de banco.
Eu banco o babaca, porque cansei de ver.
Todo lugar aonde ouso ir há míopes.
Míopes sem lente, sem óculos, sem-vergonha.
Míopes que se orgulham de enxergar embaçado, de ver a besta e achar que a besta é deus.
Há deus? Adeus.
Dá-me um tiro, dá me um gole de amônia, que é pr'eu morrer pianinho.
Dá-me o copo de veneno lá de cima do piano.
Quem bebeu fui eu.
E o azar foi todo teu.

Dá-me razão, que eu ainda vejo.
Vejo o quão desdenhosa é a tua situação, o quão miserável é a tua mão estendida, o quão barato é o teu sorriso.
Sorris a troco de pinga.
Pobres, movem-te!
Avante, sempre avante!
De grão em grão galinha enche o papo, mas de moeda em moeda pobre não enche o bolso.
Enche o saco!
Enche os cofres públicos.
Um público que não é teu, um público que é privado.
Isso, gasta teus centavos de reais em cachaça, que é pra esquecer, que é pra aquecer a garganta, que é pra gente cantar a noite inteira num coro e pregar a insônia nessa cidade.

Comigo, todo mundo:
"Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir
A certidão pra nascer, a concessão pra sorrir
Por me deixar respirar, por me deixar existir
Deus lhe pague" **
Em verso, em prosa, em moléstia.
Deus lhe pague em filhos, que hão de madrugar como eu, que hão de mendigar como eles, que hão de incomodar como vós.

Cansei de toda essa impunidade.
Preciso de um intervalo para aguentar o segundo tempo.
Preciso de sangue, que é pra banhar minhas entranhas já esturricadas.
Esturricadas de tanto escárnio fervente e elétrico que corre nas minhas veias, velhas veias, velhas feias.
Vedetes do teatro de revista.
Os dinossauros são todos filhos delas!
O meteoro não caiu no Brasil, ó, terra abençoada.
Que não tem terremotos, que não tem vulcão, mas que deu abrigo pros quarenta ladrões exilados de Ali Babá.

Ó, exército de um homem só, esfacela minha fuça, bebe meu sangue, rasga minha espinha, mete uma vara no meu ânus e força até ela sair pela minha garganta.
Dá-me a dor digna de ser ser humano, que a de ser marionete eu já conheço.
Dá-me o peixe, que não me ensinaram a pescar.
Dá-me lápis e papel, que eu quero mais do que carimbar meu dedão.
Dá-me uma aparência pelo menos harmônica, que eu preciso me vender.
Faço dois por um real, dois por um real!
Dá-me bunda, que eu preciso de mais do que um puto pra viver.

**Trecho de "Deus lhe Pague", de Chico Buarque

quinta-feira, 16 de julho de 2009

New Age Ícaro (O Hedonismo de um Velho de Guerra)

Eu daria tudo
Que um dia eu sonhei em ter
Pra voltar a ser um homem voltando da guerra,
Mesmo sem ninguém a me esperar.

Sem beijo de esposa ou abraço de filho.
Afinal, eles nunca me fizeram falta.
Tudo no mesmo lugar,
Maldito marasmo que eu gosto de ter.

Ser frígido e puro,
Dormir na areia e sonhar com o sol,
Subir num altar e cuspir sem medo
No peito de um homem crucificado.
[Quem foi que disse que é pecado?]

Andar pelos campos abertos,
Desviar dos corpos mortos
E espezinhá-los se estivessem a sorrir.

Olhar os seus olhos no espelho,
O batom na sua boca disforme,
Tudo o que um dia eu já amei.
Incondicionalmente.

Atravessar rios de sangue
E cheirar a cor escarlate
Que existe aqui dentro de mim,
Mas que eu só conheço porções mililítricas.

Pensar que suas unhas negras
Não me podem mais arranhar.
Cair em contradição com o seu eu.

E ter o prazer de ver,
Na ponta aguda da lança,
Alguém mais feliz do que eu.

E, ao fim, cair por terra.
Sujar os dedos e me entregar
Sem ter vergonha de chorar.

Chorar as lágrimas salgadas
Que um dia você secou,
Que em êxtase você lambeu,
E que agora me envelhecem.

Enfim sonhar...
Pisar na cratera mais funda da lua,
Cravar meu brasão hasteado
E lá construir meu reinado.

Tudo isso e mais um pouco
Se eu não estivesse preso nesse espelho,
Se eu fosse eu sem você
E se o sol não tivesse derretido minhas asas.


Se à primeira vista parecer nonsense, leia de novo. E de novo, e de novo e de novo.

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Promessa é dívida


Era uma tarde de outono quando conheci Nouvelle. Apesar do nome francês, ela tinha uma ascendência nordestina que eu descobri logo na primeira olhada. Os cabelos crespos discretamente alisados, as pernas curvas e bem torneadas, a pele moreno-jambo. Ela não era, nem de longe, bonita. Mas era um tipo atraente.

- Boa tarde, senhor. 
- Bom dia – corrigi-a. Eu ainda não havia almoçado e, para mim, antes do almoço ainda é dia – Carne de pato ao molho madeira e cebola à milanesa para petiscar, por favor – adiantei, poupando-a daquele falar arrastado e penoso que eu vim a amar e a odiar mais tarde, necessariamente nessa ordem.

Nouvelle me trouxe o prato depois de um bom tempo de espera. Comida fria e sem sal. Odeio comida fria e sem sal. Mulher minha que cozinhar comida fria e sem sal apanha na boca. Comi, mastigando aquilo tudo com muito desgosto e, ao fim da nada prazerosa refeição, chamei a garçonetezinha de cabaré barato que ela era.

- Garçonete!
Prestativa como uma vagabunda sentindo necessidade de um pau, ela veio. Aquele andar cadenciado, aquela bunda mole e aquelas unhas roídas de certa forma me atraíam.
- Pois não.
- A comida estava uma merda, mas eu sei que a culpa não é sua. Sei que você é uma mera cumpridora de ordens. Se eu te mandar chupar meu pau agora, você chupa. E escuta uma coisa: eu vou tirar você desse lugar, putinha – eu prometi, dizendo cada sílaba da última palavra com um entusiasmo explosivo.
Ela se mostrou surpresa. Surpresa, mas resignada. Surpresa talvez porque ninguém nunca havia lhe prometido mais do que uma colherada de feijão naqueles cafundós do Nordeste de onde ela viera. Resignada porque, provavelmente, ela era uma putinha de fato.

Fui para casa pensando naquela promessa. Dirigi, e os peitos de Nouvelle não saíam da minha cabeça. Abri o portão, e a bunda mole de Nouvelle não saía da minha cabeça. Beijei minha mulher e meus filhos, e as coxas de Nouvelle não saíam da minha cabeça. Foi uma noite longa. Samara queria sexo, e eu não estava nem aí para ela. Eu queria era Nouvelle, mas acabei comendo Samara. Foi tão automático quanto rápido e sem-graça, apesar de Samara ter aquela brancura cinematográfica, os peitos pequenos e durinhos, uma fileira de pintinhas nas costas e uma xana bem apertadinha.

Vale ressaltar que, até esse ponto da história, eu ainda não sabia que Nouvelle era Nouvelle. Para mim, ela era apenas a garçonetezinha do restaurante chulo da esquina do escritório.

Na manhã seguinte, a caminho do trabalho, passei em frente ao restaurante e não resisti: entrei. Eram oito e quarenta e cinco de uma manhã nublada. Não vi Nouvelle. Apenas as cozinheiras trabalhavam montando marmitex. Segui para o escritório para puxar o saco do doutor Novaes, enquanto tudo o que eu queria era que Nouvelle chupasse meu saco.

As horas nunca passaram tão devagar. Contava milimetricamente a trajetória do ponteiro do meu relógio de pulso. Deu meio-dia e eu saí para almoçar. Todo mundo estranhou, afinal, eu só conseguia almoçar depois da uma e meia. Ofereceram-me companhia. “Coitado, almoçar sozinho é tão triste!”. Não aceitei e fui.

Meus pés, que antes faziam aquele caminho de forma mecânica, passaram a hesitar para dobrar a esquina. Por fim, lá estava eu no restaurante, à procura de Nouvelle, da minha Nouvelle.
Solícita, veio me atender de novo. Talvez nem fosse por causa da minha promessa. Provavelmente porque, naquela espelunca, só havia ela de garçonete.

- Boa tarde, senhor.
- Bom dia – corrigi-a. Já passavam cinco minutos das doze, mas como eu ainda não havia almoçado ainda era dia – Strogonoff de frango com batata palha – adiantei novamente.
Dessa vez, o prato chegou mais rápido. Igualmente ruim. Mastiguei aquela pasta e chamei Nouvelle. Dessa vez, fui mais polido.
- Qual o seu nome?
- Nouvelle, senhor – disse ela levando a língua aos lábios para pronunciar a última sílaba.
- Nossa, que merda. Nouvelle de cabelo alisado, essa é boa. Você sabe, pelo menos, o que significa Nouvelle? – perguntei, com uma ponta de desdém.
- Sei, sim, senhor. É novo em francês – respondeu a garçonetezinha de quinta, com um orgulho de quem descobriu a América.
Resolvi não prolongar o assunto. Aquela figura submissa e misteriosa estava me excitando. De pau duro, passei a mão na bunda dela. Ela não reclamou.
- Eu vou tirar você daqui, putinha. Que tal um passeio no parque amanhã? – sem deixá-la responder, continuei – Passo aqui às quinze pras nove para te pegar.
Como ela não recusou, deduzi que aquele silêncio e aquele olhar tímido lançado ao chão fossem um sonoro “sim”.

Voltei ao escritório, mas não consegui mais trabalhar. Era Nouvelle pra lá, Nouvelle pra cá. Minha mente estava repetitiva, exausta e cheia de perversidade. Então, resolvi ir para casa, agüentar toda aquela merda de Samara e mais dois filhos. Tudo bem, era só por aquela tarde/noite.

No dia seguinte, mal o sol nasceu e eu já estava de pé, terno e gravata, como se eu fosse para o escritório. O caminho foi longo, estava nervoso como quando fui, aos meus quinze anos, num puteiro qualquer perder a minha virgindade. O pauzinho duro tão fino como um biscoito de polvilho – rio até hoje ao me lembrar desse episódio. O fato é que agora eu já era crescido e parecia um ridículo iniciante. Mas acho que todo o nervosismo se resumia a, talvez, fazer a maior cagada da minha vida. E o mais ridículo é que eu nem conhecia aquela vadia: eu a vira apenas duas vezes na vida! O rádio ligado nas notícias do dia, como de costume, deixava uma tensão no ar. Mudei de estação, ouvi um jazz e cheguei à rua Vicente Abraão, número 52.

Ela estava na porta, com uma roupa simplezinha, mas bonita. Saia preta, blusa branca, sapatilha prateada. Entrou no carro sem que eu a convidasse, e eu achei isso bom. Sinal de que as coisas não seriam tão difíceis assim. Ela começou:
- Sol bonito, né?
Não respondi. Com ela eu não estava a fim de papo. Ela servia – e muito bem – para outras coisas. Eu nunca a havia provado, mas sabia tão certo como um pênis encaixa numa vagina. Chegamos ao parque. Era relativamente perto do meu trabalho, e eu tinha medo de que alguém do escritório me visse por lá, ainda mais acompanhado de outra - todos sabiam que eu era casado, e eu fazia a maior questão de esconder toda e qualquer mazela que pudesse existir na minha família. Não fiz a mínima cerimônia para Nouvelle descer do carro. Já fizera demais em ter dado carona para ela. Ela não era mulher que merecia essas coisas de abrir a porta, puxar a cadeira e etecétera. Ela servia - e muito bem - para outras coisas. Fomos andando em direção ao lago, enquanto tudo que eu pensava era em afogar o ganso (ha-ha-ha!). Chegamos e paramos em frente ao lago. Aquele silêncio estava me constrangendo. Para quebrar a tensão, eu enchi minha mão nas carnes da bunda mole dela. Ela não reclamou e, para mim, não reclamar é gostar. Mas a áurea ficou ainda mais estranha depois disso. Esperava que ela, diferentemente da primeira vez, porque agora não estava em ambiente de trabalho, dissesse um manhoso "pára!" e começasse a defender sua honra e pureza. Ou até que ela gritasse um sonoro "vá se foder, seu filho da puta!". Tudo seria melhor do que aquele silêncio constrangedor.Nos sentamos à beira do lago – os patinhos até sugeriam certo romantismo, mas eu odeio romance – e, então, eu resolvi puxar assunto.
- Como você foi parar naquela merda daquele restaurantezinho de quinta?
Esperando uma resposta como "de quinta, mas bem que você frequenta", brochei ao ouvir aquela moça contando uma história trágica. Coisa de seca no Nordeste, sete irmãos, família retirante... Não estava o mínimo interessada naquela jornada trágica, mas deixei ela falar durante uns cinco minutos, só para se sentir importante. Enquanto isso, eu não conseguia tirar os olhos daqueles peitos. Nouvelle era uma besta, e bestas ficam muito bem de quatro. Eu queria continuar tudo aquilo: meu pau duro, a xana dela melada. Eu queria continuar.

E continuei. No dia seguinte, no trabalho, inventei que tivera uma disenteria que até me deixara internado. E esse foi o pretexto para eu sair mais cedo do trabalho – afinal, disenteria sempre dá delay no dia seguinte – e procurar Nouvelle. Precisava fodê-la. Fui até o restaurante e achei estranho não encontrá-la por lá. Das poucas coisas que prestei atenção na nossa conversa, lembro-me dela dizendo que não folgava em dias de semana... Mas não perguntei por ela. Não me rebaixaria a isso.

Na quarta-feira, estava desconcentrado. O trabalho não rendia, o café não me despertava; estava agoniado. Desci para o almoço – sem fome – ao meio-dia e quarenta e três – antes do horário de costume. Mal pude acreditar quando vi Nouvelle sentada na recepção. Atrevida demais, aquela vagabunda.

- Como você descobriu que trabalho aqui? – perguntei, puxando-a pelo braço.
- Vi no seu crachá enquanto você almoçava no restaurante – Nouvelle estava chorando.
- O que aconteceu? – indaguei, seco.
- Faltei ontem no serviço e fui despedida. – ela quis chorar no meu ombro, e eu logo me afastei.
- Por que você não inventou uma diarreia?
- Porque eu sou honesta.

Pra mim, na verdade, aquilo era papo para ganhar consolo. Enfiei-a no carro e a levei para um motelzinho pulguento, mas discretinho. Ela não se opôs. Apenas me seguiu, sem reclamar. Joguei-a na cama, arranquei-lhe a roupa, dei-lhe um bofetão na cara. Nem de longe aquela havia sido a melhor foda da minha vida, mas a inércia dela me excitava. Ela não gemia, não se mexia, não suspirava. Apenas cedia o buraco aonde eu socava meu pinto com uma violência de Tarantino.

Nossas fodas passaram a ser diárias, com exceção dos finais de semana. O corpo dela nem era tão bonito – muito pêlo, muita estria, muita flacidez – e ela nem era boa. Mas fodê-la me aliviava a tensão e me fazia homem. Comer Samara não era assim: Samara não era inerte; ela gritava, me mordia, me arranhava, pedia mais. Ela brilhava mais na cama do que eu.

Eu estava feliz. Apesar de ter que ouvir as constantes queixas de uma Nouvelle desempregada e as súplicas para que eu a colocasse para trabalhar no escritório, nem que fosse como faxineira (eu sempre respondia que nem para passar lustramóveis no rodapé ela tinha capacidade, mas ela insistia nessa ideia insana), comê-la me fazia ter pique para comer Samara como um coelho, para trabalhar como um workahoolic, para dirigir como um piloto de F1, para brincar com meus filhos como uma criança, para dormir como um anjo.

Segunda-feira chegara, e eu não tinha mais pânico nem depressão aos domingos. À uma e vinte e sete, desci para almoçar. Mais uma vez, encontrei a miserável lá embaixo. Dessa vez, ela não chorava. Parecia estar feliz. Fui logo a repreendendo por ter me procurado no trabalho novamente e perguntei qual era a novidade, tendo a plena certeza de que felicidade de pobre não podia ser mais do que a aquisição de uma TV de vinte e nove polegadas em vinte e quatro parcelas nas Casas Bahia.
- Estou grávida. – ela disse, com um leve sorriso no rosto.
Não respondi. Não podia responder ali. Não havia o que responder, afinal, aquilo não era uma pergunta, e sim uma afirmação – equivocada, diga-se de passagem. Meus espermatozóides não seriam tão burros a ponto de fecundar um óvulo de um animal como Nouvelle. Na dúvida, fiz que não entendi:
- Ahn?
- Estou grávida. – ela repetiu.
- Pára de brincadeira. E me deixa almoçar em paz.
- Não é brincadeira. Comprei o teste de farmácia e deu positivo.

Teste de farmácia é coisa de pobre, mas raramente falha. Eu estava nervoso. Enfiei Nouvelle dentro do meu carro, levei-a ao laboratório médico mais próximo. Pela segunda vez na vida – a primeira foi na doença do meu pai – clamei por Deus na vida. Aquilo não era verdade.



- Sua puta, vagabunda, desgraçada, maldita, lazarenta. O que nós vamos fazer agora? Bem que eu deveria saber que você só prestava pra dar cria. Ordinária!

E foram tantos os palavrões e maldizeres que eu cuspia saliva, eu espumava, eu desgrenhava meus cabelos. Percebi que ela ficou assustada com a minha reação. Minha vontade era de bater nela até perder o juízo, até não poder mais, até perder a força, até ensopar minha camisa de suor, até desfacelar aquele rosto de retirante nordestina com fome. Mas eu não podia. Contei até três, larguei-a lá e voltei para o trabalho. Até hoje não sei e não faço a mínima questão de saber como ela fizera para voltar para aquele barraco na favela do Saco, se Nouvelle mal tinha dinheiro para comer. Me afundei numas planilhas e depois fui para casa, sem o menor pique para aguentar o fogo de Samara. Tomei um banho de uma hora e meia e pensei na vida. Já sabia bem o que fazer, mas aquilo era tarefa pro dia seguinte.

Na terça-feira, acordei cedo. Pus a camisa mais bonita do closet, a mais branca que encontrei no armário. Dia de gala.
- Bom dia, seu Clóvis.
- Bom dia, meu filho! Tá bonito! Roupa de gala?
- Sim, hoje tenho um dia muito especial. Uma caixa de digoxina, por favor. A minha acabou ontem, já fiquei sem tomar por mais tempo do que eu deveria...
- Claro!
Solícito como sempre, seu Clóvis trouxe uma caixinha azul com uma tarja vermelha, provavelmente com a inscrição “venda sob prescrição médica”, mas farmacêutico nenhum liga mais pra esse tipo de detalhe nos dias de hoje. Seu Clóvis não era exceção e sabia da minha cardiopatia e da minha necessidade de comprar digoxina mensalmente, o que facilitava ainda mais meu acesso ao remédio.

Sempre reclamei feito um ranzinza dos quinze reais dispensados todo mês com essa porra desse remédio – não sou pobre, sou muxiba, disso todo mundo sabe. Mas daquela vez foi diferente. Eu estava disposto a pagar o dobro, o triplo, o duodécuplo. Saí da farmácia guardando aquela caixinha de papelão no bolso, como se ela fosse uma pedra de diamante que eu tivesse tirado do charco com a boca e lapidado a dente.

Fui para o escritório, trabalhei feito uma formiga no verão. Não parei para almoçar, não me levantei para esticar as pernas, não fui ao banheiro uma vez sequer, nem pra dar uma mijada, nem pra bater uma punheta. Eu estava feliz. Agitado, mas feliz. Ansioso, mas feliz. Fodido, mas feliz.

Às cinco e vinte da tarde, entrei no meu A3, já tão impregnado com o cheiro azedo de Nouvelle, e tomei rumo à favela do Saco. Eu sabia qual era o barraco dela porque num acesso de bondade, um dia, depois de fodê-la, levei-a até aquele muquifo. Não era difícil distinguir um barraco do outro. Pobre gosta de cores, e o da Nouvelle era verde água com rosa claro, “as cores da Mangueira”, como ela dizia.

Bati à porta, e ela não tardou a me atender, com um sorriso no rosto – pela primeira vez na vida, aquilo pra mim era um rosto, e não um focinho. Eu também estava amigável e beijei-lhe os lábios disformes com uma ponta de carinho. Ela ficou surpresa, e eu disse:
- Surpresa maior ainda está por vir. Vou ali no carro e já volto.

Audi A3 em boca de favela não pode ser outra coisa senão carro de traficante, devia pensar o pessoal daquele cafundó pra me olhar com tanto respeito. Peguei uma garrafa de Cabernet Sauvignon, um botão de rosa vermelha e um pano preto. Conferi se o remédio estava no meu bolso. Tudo nos conformes.

- Fecha os olhos – eu gritei do lado de fora.
Sempre subserviente e ingênua, ela fechou. Vendei-a com o pano preto e ela gostou. Coloquei-a sentada no sofá-cama e fui para a pia, que ela usava tanto para cozinhar quanto para lavar roupa, como se podia perceber ao ver um prato de vidro e uma calcinha suja de corrimento dentro da mesma cuba. Com asco, peguei dois daqueles copos de requeijão que pobre usa para beber água e despejei o vinho. Em um deles, diluí bem cinco comprimidos esmagados de digoxina. Pus o caule da rosa dentro do meu terno, só deixando a flor para fora. Queria fazer um ar galanteador e acho que fiquei bem bonito.

Fui até Nouvelle, desvendei-a, entreguei-lhe a flor e o copo de vinho. Deslumbrada com aquilo tudo, ela começou a chorar e a beber o vinho em goles de encher as bochechas.
Pronto. Serviço feito. Mal terminei meu copo, Nouvelle já estrebuchava no chão. Ela ficou tão feia, mas tão feia, que eu até tive vontade de sair correndo. A boca na diagonal, espumando. Os olhos vidrados, quase pulando fora da órbita. Os cabelos desgrenhados, a escova vencida.
Já ia virando as costas quando pensei com meus botões: por que não comê-la pela última vez? Nouvelle se manteve mais inerte do que de comum. Mas eu gozei, e então ficou tudo bem. Saí de lá pensando como sou um homem de palavra. “Vou tirar você desse lugar, putinha”. Quem se atreve a dizer que eu não tirei? É... pra mim, promessa é dívida.


segunda-feira, 13 de abril de 2009

Quando um homem chora


Ela mexia com os meus brios. Os olhos negros sob as sobrancelhas cerradas me fuzilavam num simples mirar. Os lábios carnudos sob o buço escurecido me devoravam a cada sorriso, que deixava à mostra seus pares de dentes tão claros e fortes. Eu sonhava – e como sonhava! – com aquele corpo largo preenchendo mais da metade da minha cama.

Ela era Alzira. Eu não sabia o nome dela, mas para mim era Alzira, a moça que passava para lá e para cá carregando tijolos e argamassa a fim de colaborar na construção da nova paróquia da cidade. Seus braços troncudos eram capazes de erguer e carregar uma parede de concreto. Eu nunca a vira fazendo tal coisa, mas tinha certeza de que era capaz.

Ela era pura e boa. Eu sabia que, além de ser voluntária na construção da igreja, trabalhava por lá também à noite. Fazia canja de galinha para distribuir aos pobres. Banhava o padre assim que os sinos badalassem as oito. Padre Júlio – coitado! – fora incapacitado por um acidente: tropeçara na batina no dia de todos os santos, enquanto fazia oferendas ao ar livre, e rolara ribanceira abaixo, mais de trezentos e cinqüenta pés de altura. Desde então, ficara inválido das pernas, mas mesmo assim continuava a rezar a missa com o mesmo fervor de anos atrás.

Fervor que só não era maior do que o borbulhar do meu sangue quando Alzira passava carregando três baldes d'água, um em cada mão e o terceiro equilibrado na cabeça ligeiramente plana e coberta por uma vastidão de longos fios negros e cacheados. Toda aquela água vinda do açude deveria abastecer o tanque de reserva da igreja. A água que batizaria os recém-nascidos de Ponta do Sol já era benta pelo simples tocar das mãos calejadas de Alzira. Água aquela que também banharia o corpo do Padre Júlio e – por que não?! – o corpo moreno e femininamente viril da minha Alzira. Água esta que eu beberia até me afogar, na sutil esperança de sentir o gosto azedo do suor de Alzira. Água aquela que regaria as flores em oferenda à Nossa Senhora.

A Minha Senhora era Alzira. Era minha, apesar de a minha pele nunca ter tocado a dela, de os cílios dela nunca terem roçado a minha barba, de a minha boca nunca ter encontrado a dela, de as unhas dela nunca terem se cravado na minha carne. Carne fraca, eu precisava tê-la. Querer nunca é o bastante.

Moço, me vê um arranjo de flores? Qual deles? O mais bonito que tiver. Ele então voltou com um maço de rosas vermelhas e amarelas. Vermelho da paixão, amarelo do respeito. Junto com as flores veio um cartãozinho em branco. Mas tá em branco, moço... É pra você escrever a mensagem que quiser, o moço disse. Então me empresta uma caneta, eu respondi. Pensei, pensei, pensei. Os meus neurônios de menos e o meu vocabulário de quarta série do primário não me permitiam ser como os poetas. Então eu pus em letras de forma bem grandes um EU TE AMO, e em letrinhas formiguinhas um mesmo sem te conhecer. Assinei o cartão com a caligrafia mais bonita que eu sabia fazer. Acertamos as contas, eu e o moço da loja das flores. Ele continuou por lá, eu segui pela rua de terra me encorajando. Mas só de lembrar daquele par de pernas torneadas e ligeiramente peludas, eu estremecia de cima a baixo. Ela não era pra mim.

Cheguei em casa. Casa simples a minha, mas que dava pra bem acomodar dois corpos: o meu mais o de Alzira. Descalcei os sapatos, massageei os artelhos gastos de tanto pé no chão. Me peguei pensando nela, me repreendi. Pus a roupa de domingo, apesar de ainda ser quarta-feira. Reforcei a lavanda e fui em direção à casa paroquial, de ramalhete na mão.

Aquele caminho que os meus pés sabiam trilhar de cor nunca fora tão longo... Vinte e sete, vinte e oito, vinte e nove. Minhas mãos estavam trêmulas, o cartãozinho caíra no chão barrento. Eu abaixei-me para pegá-lo. Cinqüenta e um, cinqüenta e dois, cinqüenta e três. Estava sujo, mas ainda dava pra ler a declaração. Até as letras pequenininhas. Oitenta e quatro, oitenta e cinco, oitenta e seis. As lamparinas da cidade estavam todas acesas. Bonito ver minha terra enfeitada para mim e para ela. Cento e treze, cento e quatorze, cento e quinze. Eu já suava como uma bica. De nada adiantara a lavanda reforçada. Cento e quarenta e oito, cento e quarenta e nove, cento e cinqüenta. Meus Deus, minhas unhas estavam sujas! É que trabalhar com terra é assim mesmo, ela há de entender. Cento e setenta e nove, cento e oitenta, cento e oitenta e um. Xiii, minha camisa azul e verde de flanela estava furada no punho e tinha o colarinho manchado. Eu botara água fervendo, mas de nada adiantara. Ela havia de entender que homem que vive sozinho não anda tão brilhoso quanto homem de mulher. Duzentos e quarenta e seis, duzentos e quarenta e sete, duzentos e quarenta e oito. Duzentos e quarenta e nove! Duzentos e quarenta e nove passos eram a distância da minha casa até a casa paroquial. Distância entre mim e minha Alzira.

A casa paroquial era velha, mas bem conservada. Parei ali na porta grande e verde, precisava tomar coragem. E se ela recusasse meus agrados? E se ela não soubesse ler e eu tivesse de dizer o que estava escrito no bilhete em alto e bom tom? E, pior, se ela lesse o bilhete e desdenhasse de mim? Foi só então que eu percebi que as luzes da frente da casa paroquial jaziam todas apagadas. Podia ser que ela estivesse distribuindo sopa aos pobres. Esperei mais uns cinqüenta passos. Aí não me agüentei. Pus-me a rondar a casa toda, à procura de nem que fosse uma luz de vela. Encontrei uma claridade mansa no que deveria ser o banheiro da casa. Ela deve estar a banhar o padre, pensei em voz alta. Foi então que encostei o ouvido sob a janela e ouvi gemidos. Voz grave. Devia ser o padre reclamando das dores do acidente. Eis que então percebi, pela janelinha, a sombra na parede dos corpos juntos à luz das velas. Mal sabia eu distinguir o que era Padre Júlio, o que era Alzira.

Fiquei aturdido. O primeiro pensamento que me turvou a cabeça foi que o padre a assediava. Pobre Alzira, nas minhas mãos não seria tratada assim. Maldito padre!, de que adianta pregar respeito e condenar pecado na missa?! Sujo, nojento, cabra desgraçado! Eu ia falar pra cidade inteira, eu ia pregar cartazes de repúdio na porta da igreja, eu ia mostrar pra todo mundo que o padre não era paralítico coisa nenhuma, que ele era um maníaco, isso sim! Foi aí que meus pensamentos de revolta foram interrompidos por palavras de incentivo não minhas, mas vindas de dentro da casa: vai, continua, mais, mais! E então caí em mim: Alzira gostava! Vadia, vagabunda, puta de estrada! Cadê toda a pureza e a bondade que ela tinha? Por que fazer isso com o meu coração? Animal burro que eu era!

Saí com o coração quebrado, mas pulsando mais forte do que nunca. Que morram Alzira e o padre, ele penetrado nela! Alzira, minha Alzira, cadela de eremita! Como pude nutrir os mais nobres sentimentos por uma mulher fácil e descartável? Nunca me sentira tão otário e enganado em toda a minha vida. O caminho de volta me pareceu tão curto, e eu não consegui maldizer os dois nem a metade do que mereciam.

Cheguei em casa, descalcei as botas sujas de barro – de tão fundo que eu pisava, imaginando meus pés afundando o lindo rosto de Alzira e as partes baixas do padre –, e só então foi que percebi que ainda carregava o arranjo de flores com o cartãozinho. Num primeiro impulso, atirei-o ao chão. Umas poucas rosas perderam as pétalas, e eu olhava aquilo com os olhos mareados. Então recolhi as rosas e percebi que elas de nada tinham culpa. A essa hora, eu já chorava. E era tanto, que dava para encher o vaso de flores só com as minhas lágrimas. Meus olhos embaçados não me permitiam ver com certeza. Tateei toda a cômoda velha, achei uma garrafa de vidro. Abri, cheirei. Parecia-me pinga. Entornei tudo aquilo como se fosse água e, tonto, caí no chão. A garrafa se estilhaçou. Pus a mão sobre os cacos de vidro até sentir o sangue quente correr pelas minhas palmas e pingar no chão. Apalpei um pedacinho de papel, era o cartãozinho. Pensei em rasgá-lo nos mais minúsculos pedacinhos. Mas não foi preciso. Ele se despedaçou de tanto o sangue que o sujava e de tantas as lágrimas que caíam dos meus olhos.

Trôpego, resolvi me deitar, e prometi pra mim mesmo, embriagado, que só acordaria na semana seguinte. O mundo podia desabar que eu não estenderia um só dedo. Fechei os olhos, mas tudo o que me vinha à cabeça era a sombra dos corpos entrelaçados. Maldisse tanto aqueles dois, que minha cabeça só se esvaziou lá pelas quatro da manhã, a hora em que eu finalmente consegui dormir.

Mal tinha pregado os olhos, acordei com socos desesperados em minha porta. Acorda, senhor moço! Acode, senhor moço!, uma voz feminina gritava. Contrariado, pus os pés pra fora da cama e senti a cabeça pesada e latejante. Abri a porta, esfregando os olhos. Que foi? Uma tragédia, senhor moço! Vem comigo! Eu, de olhos inchados, bafo de onça e de roupa de domingo que eu me esquecera de tirar, fui correndo atrás da moça desesperada. Cada passo me soava como uma martelada na cabeça. Paramos de solavanco, e foi então que esfreguei bem meus olhos e vi o que eu não queria ver: a igrejinha em construção havia desabado. Escombros, escombros, escombros. E eu à procura de minha Alzira. Pus-me a urrar em desespero, feito um urso polar no cio. Pulei sobre os escombros e comecei a revirá-los com as mãos. Eu precisava encontrar Alzira. Todos me olhavam com estranhamento, e foi então que eu encontrei um par de pernas morenas, peludas e torneadas. Puxei com toda a minha força aquele corpo debaixo dos escombros. Eis que surge Alzira, a minha Alzira, sem um dos braços e com um rosto lindamente inexpressivo. Pus meus ouvidos sobre o seu peito largo e de seios escassos. Peguei o pulso do braço que ainda restava. Tateei seu tórax, na esperança de senti-lo inflar. Não havia sinais vitais. Alzira, a minha Alzira agora receberia as minhas rosas de paixão e respeito sobre seu túmulo.

Eu não podia acreditar que minha boca era tão santa assim. Comecei a chorar copiosamente sobre o cadáver e a esmurrar minha própria boca até cair o primeiro dente. Não me importava com as expressões de espanto das pessoas ao redor. Atirei meu corpo sobre o corpo inerte de Alzira, precisava senti-la, precisava reanimá-la. Comecei a beijar-lhe a boca e a rasgar-lhe o vestido laranja que lhe cobria os pudores. E lá estava ela, sem se queixar ou resistir. Alzira era puta mesmo. Não me contive e rasguei-lhe a calcinha. Precisava tê-la, nem que fosse por um segundo. No mesmo momento em que a costura mal feita da calcinha se rompeu, caí para trás de surpresa. Não, não podia ser. Alzira, meu Deus, era um homem!



Moral da história: nem tudo é o que parece ser. E mulher precisa fazer depilação.

domingo, 29 de março de 2009

Não-passional

Estamos em tempo de Sodoma e Gomorra. Não sei se foi Deus – nem sei se há Deus –, mas botaram fogo e enxofre na Terra. A rosa que nasce no quintal é exceção: comum é o chorume que polui os lençóis freáticos, o ácido sulfúrico que queima a pele, o gás carbônico que escurece o ar. Trivial é a bala que cruza o morro; bala Juquinha é luxo. Corriqueiro é o menino cheirar cocaína; cheiro de alfazema é exceção. Banal é a desgraça; quem vê graça é alienado.

Quem é o culpado? Eu, que, sentada atrás de um computador, escrevo sobre violência? Você, que, sentado à frente de um computador, lê sobre violência? Eles, que, sob um palanque, prometem o mundo e cumprem migalhas? Eles, que, escudados por um três oitão, dominam pelo uso da força? Ou Ele, que, sobre uma nuvem macia e calçando chinelos de corda, assiste de camarote o Homem sendo o Lobo do Homem e não intervém?