A bebida entra, a verdade sai.
Aposto a primeira rodada de cerveja que você já foi vítima do verdadeiro crime
hediondo que esse ditado preconiza. Crime esse cuja pena é aturar durante tempo
indeterminado os fantasmas da própria consciência – como se suportar a cabeça
latejando e aquela saliva com gosto de quase morte no dia seguinte já não
fossem punições cruéis o bastante. Mas aquela noite, você decidiu que nada
seria o bastante. Antes de sair de casa colocou o vestido mais curto, como se
ele não fosse curto o bastante. Calçou o salto mais alto, como se ele não fosse
alto o bastante. Passou o batom mais vermelho, como se ele não fosse vermelho o
bastante. Borrifou o perfume mais forte, como se ele não fosse forte o
bastante. Você foi tudo o que não costumava ser de segunda a sexta em horário
comercial, como se ser aquela menina insossa do escritório não fosse o
bastante. E não é mesmo – convenhamos.
E saiu de casa disposta a arrasar
– corações, quarteirões, pensamentos, Dry Martinis e o que mais estivesse pela
frente. E você realmente foi um belo dum furacão, daqueles que deixam qualquer
Katrina na sola do chinelo – ou melhor, do salto quinze. Daqueles que a gente
só observa de longe. Daqueles que a gente até senta pra ver passar – cantando
ou não cantando coisas de amor. Daqueles que a gente espera ir embora pra
contabilizar os estragos. E olha, dessa vez, os estragos foram muitos. Graves.
Irreparáveis. Cinco corações partidos, cinco pensamentos roubados, nove taças
de Martini sorvidas – duas delas quebradas – e uma verdadeira inundação de suor
banhando o chão onde todo mundo dançava mecanicamente ao último remix que fizeram daquela música do
Bruno Mars.
Ninguém sabia, porque você
escondeu muito bem, mas você travava uma batalha secretíssima contra você
mesma. Contra aqueles pedaços de você que ainda choravam por ele, que saiu para
comprar cigarro há dois meses e desde então não voltou. E você venceria de
lavada, viu? Venceria com honras, com pétalas, com chuva de champanhe, com
tapete vermelho – se não fosse o seu celular. Ah, o celular. Aquela desgraça
digital. Nostalgia de um tempo que não experimentamos, em que as únicas
maneiras de marcar um encontro se resumiam ou a ser pontual ou a esperar
ansiosamente na frente de um orelhão. Você sacou seu celular do bolso e mandou
um “eu te amo” pra lá de ébrio pra ele. Sim, o moço do cigarro. Que
provavelmente já estaria perdido em outros braços – não tão carinhosos quanto
os seus. Amordaçado em outros lençóis – não tão macios quanto os da sua cama.Acalantado
por outras vozes – nem tão bonitas como a sua.
Pelo menos naquela noite, ele não
havia respondido. Não adiantou nada evocar o santo milagreiro daquele panfleto
que lhe entregaram no farol na semana passada. Não adiantou nada beber outro
Martini pra descontrair – afinal, não dizem que as coisas acontecem quando a
gente menos pensa nelas? Não adiantou nada a promessa de só olhar o celular de
novo depois que já tivesse chegado em casa. Ele não respondeu. Não ligou.
Ignorou. Pode ser que nem tenha visto – você tenta se acalmar. Espera mais uma,
uma e meia, duas horas. E nada. Então você pega no sono, vencida pelo cansaço
de um coração esmigalhado. E como Amy Winehouse em seus dias de pouca glória,
você acorda. Os cabelos desgrenhados – mas não pelas mãos faceiras de algum
menino. Os olhos borrados – mas não de tanto se esfregar com algum cara. A
cabeça virada – mas não de paixão. Então, certa de que Amy sabia das coisas
quando cantou que “love is a losing game” (ou “o amor é um jogo de azar”),
você admite a derrota.
Pelo menos você falou a verdade –
aquele “eu te amo” precisaria sair de dentro de você pra não virar câncer aos
45 anos. A verdade impulsionada pela bebida que entrou. Você poderia ter dito
tantas verdades, mas preferiu dizer essa. Poderia ter dito ao menino da fila do
bar como os olhos castanhos dele eram bonitos. Poderia ter dito à sua amiga
como ela ficou bem com o novo corte de cabelo. Poderia ter dito a um estranho
qualquer que Deus, à imagem e semelhança do homem, não existe. Mas preferiu
dizer essa verdade. Três palavras e sete letras que já quebraram muitos
corações quando não correspondidas. Mas é isso aí. Agora você vai, lava o seu
rosto de misericórdia e compra mais uma dúzia de fichas para jogar na roleta do
amor. Se alguma delas vai vingar? Não sei. Mas aí é que está a graça. Afinal,
como já dizia Oscar Wilde, “the mistery of love is greater than the mistery of death”
(ou “o mistério do amor é mais intrigante do que o mistério da morte”). E que aprendamos a conviver com isso.
Originalmente publicado em Casal Sem Vergonha
Originalmente publicado em Casal Sem Vergonha