domingo, 29 de março de 2009

Não-passional

Estamos em tempo de Sodoma e Gomorra. Não sei se foi Deus – nem sei se há Deus –, mas botaram fogo e enxofre na Terra. A rosa que nasce no quintal é exceção: comum é o chorume que polui os lençóis freáticos, o ácido sulfúrico que queima a pele, o gás carbônico que escurece o ar. Trivial é a bala que cruza o morro; bala Juquinha é luxo. Corriqueiro é o menino cheirar cocaína; cheiro de alfazema é exceção. Banal é a desgraça; quem vê graça é alienado.

Quem é o culpado? Eu, que, sentada atrás de um computador, escrevo sobre violência? Você, que, sentado à frente de um computador, lê sobre violência? Eles, que, sob um palanque, prometem o mundo e cumprem migalhas? Eles, que, escudados por um três oitão, dominam pelo uso da força? Ou Ele, que, sobre uma nuvem macia e calçando chinelos de corda, assiste de camarote o Homem sendo o Lobo do Homem e não intervém?

terça-feira, 17 de março de 2009

Passional

Apresentaram-me ao amor. Era uma noite de calor, de outubro e de chegar cedo em casa. Ele veio vadio, me sorriu de canto de boca, e eu não sei se correspondi. Desavergonhado e bem (mal) intencionado, me ofereceu um drink. Eu, ingênua e contrariando conselho de mãe que diz que não se pode aceitar nada de estranhos, entornei o copo nuns três goles. Caiu-me como um grão de açúcar cai num cântaro, e tenta nadar pra não virar matéria decantada. Tentei, tentei. A carne é fraca e o amor é carnal. Não consegui.

Foram dias seguintes, e eu indo da superfície ao fundo do cântaro. Envolvi-me, confesso. O líquido era quente, esbranquiçado, viscoso: era fruto de prazer. Os corpos pediam mais: suavam, agonizavam, grudavam, se agrediam. As mãos eram errantes: às vezes feriam, às vezes afagavam. Os pensamentos eram incertos: às vezes futuravam, outras suturavam o futuro. À essa época, eu ainda não sabia que ele era o amor - ele se apresentou como Moço.

Sempre fui dividida, mas ele conseguiu quebrar o meu picote e me separar em duas. Eu era eu, mas era dele. Eu era dele, mas era de todo mundo. O fato é que ele - só ele - sempre teve acesso à minha área restrita: coração, pensamento e púbis. E ele não tinha área restrita: era tudo de todo mundo, afinal, o amor é universal. E desdenhoso, e desgraçado, e vagabundo, e não presta.

Quando constatei tudo isso, tentei voltar atrás. Duvidava de que ele fosse o amor. Disseram-me que ele era cego, mas eu sei que ele me viu e me achou graciosa - ou, pelo menos, digna de uma trepada. Eis que foi tarde: já estava afogada, sem saber de nada e fora do controle - uma das coisas que mais me irrita, por me mostrar impotente. O amor fez de mim um buraco para enfiar o haste de uma bandeira que hoje faço questão de pisar em cima, cuspir e queimar - necessariamente nessa ordem.

Afastamo-nos, fui infeliz pela metade. Metade de mim ria, a outra chorava. E a terceira metade esperava. Talvez, tudo o que ela mais queria era provar o doce da vingança, sweet honey revenge. Pouco tempo passou, e as coisas voltaram a ser como não deveriam. Ele voltou com a mesma peroba na cara, com o mesmo gingado no andar, com as mesmas falácias na voz, com as mesmas trapaças no agir. A terceira metade falava alto. Eu queria e ela queria, mas não queríamos a mesma coisa. Ela chegou a gritar, mas eu abafei o clamor com a maciez de um travesseiro de penas de ganso. Ela se aquietou, perdeu a consciência, morreu - e a pobrezinha estava certa.

Digo que fui feliz nas duas metades. Não plantara uma árvore, não tivera um filho, não escrevera um livro. Mas já era tempo de morrer feliz. Eu tinha o amor, o amor me tinha, nós metíamos. Era sorriso pra cá, carinho pra lá, desejo pra todo lado. Lembranças sôfregas, que hoje a minha terceira metade faz questão de envenenar. Eu não, ela sim. Fui das nuvens, fui das línguas. Hoje sou das línguas de fogo. Codinome diabo. O quão familiar isso soa ao amor? O que foi o diabo senão alguém que odiou? O que é o ódio senão o ex-amor? Hoje, o amor diz que me quer. No mesmo hoje, eu digo que penso para então sentir.

Penso nas contas a pagar, nas coisas a fazer, penso no quanto vale a pena pensar. Sou um turbilhão de opostos, de ântonimos, de tudos e nadas. Sou dúvida, sou dívida. Não sei se o amor é bom, não sei se ele é mau. Mas que ele tem lábia, ah!, como tem...